Na qualidade de
representante da Comunidade Indígena Aldeia Maracanã, a Defensoria Pública da
União no Rio de Janeiro (DPU/RJ) enviou na terça (29), resposta à
carta-proposta do Governo do Estado, recebida via Secretaria de Estado de
Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH). O documento, elaborado pelos
próprios índios que habitam o antigo Museu do Índio, foi enviado por fax à
Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro.
Abaixo, texto da
carta elaborada pelos índios:
"Excelentíssimo
Senhor Governador,
Recebemos com um
misto de júbilo e apreensão sua carta-proposta (via Secretaria Estadual de
Direitos Humanos) que trata da nossa permanência no velho prédio do antigo
Museu do Índio e das possibilidades de darmos continuidade ao nosso projeto de
transformá-lo em uma instituição cultural digna da cidade do Rio de Janeiro e
da nossa presença nessa cidade.
Passamos dias e
dias discutindo sua proposta, entre nós indígenas, e com todos os não indígenas
que vêm nos prestigiando em suas demonstrações de interesse e amor por nossa
causa.
Qual a nossa causa,
Senhor governador?
É simples, porém
difícil de ser realizada, e acreditamos que só poderá ser realizada numa cidade
como o Rio de Janeiro, por sua abertura ao novo, ao inusitado, à criação
cultural e política.
Queremos, como V.
Exa., transformar o Museu do Índio num Centro Cultural que proporcione a todos
nós uma vivência urbana digna, livre, autônoma e criativa.
Só que V. Exa. quer
que saiamos deste prédio majestoso, varonil, e que guarda para nós, indígenas,
a memória de nosso melhor relacionamento com a sociedade brasileira. Guarda
também para os cariocas e todos os habitantes que amam essa cidade a memória de
um passado que não pode ser destruído, sob pena de todos nós perdermos nossas
raízes, nosso conhecimento e nossa memória histórica.
Perguntamo-nos:
Será que o Exmo. Governador não frequentou este prédio quando era o velho Museu do Índio?
Tantos homens e
mulheres o visitaram em suas infâncias, levados por suas professoras para
conhecer algo de nossas vidas e nossas culturas. Por certo o Senhor também o
visitou, com seu ilustre pai e sua mais ilustre mãe, que é uma museóloga de mão
cheia.
Não cabe nesta
nossa simples resposta à sua carta-proposta explanar detalhadamente o que
significa esse Museu para nós, para nossas culturas e para nossa história de
relacionamento com a sociedade brasileira. Aqui foi elaborada e edificada a
política indigenista brasileira, ao tempo de Marechal Cândido Rondon, Darcy
Ribeiro, Orlando Villas-Boas e outros luminares do indigenismo brasileiro. Aqui
nossos avós foram recebidos por esses homens cheios de boa vontade e amor para
nos dar um alento e apontar uma direção para os nossos problemas criados pela
expansão brasileira sobre nossas terras. Para maior esclarecimento sobre este
ponto, incluímos em anexo a esta carta o laudo escrito pelo antropólogo Mércio
Pereira Gomes sobre a importância deste Museu do Índio para nós.
Nossa proposta aqui
não é bem uma contra-proposta. Achamos que ainda não é tempo de negociação e
sim de diálogo.
Queremos convidá-lo
para vir aqui e conhecer esse prédio maravilhoso, com pé direito de mais de
oito metros, com paredes de um metro de largura, feitas com pedra, barro e
gordura de baleia. É um prédio construído em 1862, Senhor Governador! E que
está de pé, ainda imponente, à vista de quem vai ao Estádio Mário Filho, quem
passa indo e vindo da Zona Norte, ao lado da UERJ, com saída do Metrô.
Como nos querer
persuadir de que estaríamos melhor num antigo presídio, conforme sua proposta?
Só o nome presídio nos causa calafrios, lembranças de tantos sofrimentos por
que passaram nossos povos.
Estamos na cidade
do Rio de Janeiro, e em tantas outras cidades brasileiras, Senhor Governador,
porque queremos. Não somos rebotalhos de povos em extinção. Somos representantes
de povos que agüentaram as agruras das perseguições, da morte morrida e da
morte matada, e estamos em crescimento. Alguém diria: em crescimento
demográfico e em ascensão político-cultural. Alguns de nós temos nossas terras
demarcadas e garantidas, outras as têm em pequena porção do que já as tiveram,
outros ainda precisam de ter suas terras reconhecidas. Inclusive neste estado
fluminense, Senhor Governador.
Por que estamos
aqui e por que queremos a criação de um Centro Cultural neste velho Museu? Porque
queremos viver uma experiência humana que não conhecemos. Queremos viver uma
vida urbana, sem perder nossa identidade. Queremos mostrar para o povo
brasileiro não indígena que estamos vivos e que podemos contribuir para o
avanço da cultura brasileira.
Podemos, sim!
Nossas culturas são singelas, porém sólidas, complexas, ricas em conhecimento
do mundo da Natureza, experiências humanas que não podem desaparecer. Isto
sabem os que já viveram conosco, desde os marinheiros ingleses e irlandeses que
tinham uma feitoria em Cabo Frio, em 1502, e que explicaram para Thomas Morus
como era nossa cultura, nosso modo de ser. Thomas Morus, inspirado nesses
relatos, escreveu a Utopia, um dos livros mais importantes da civilização
ocidental, e que o Senhor certamente já o leu, ou sabe dele por sua experiência
política de esquerda, num passado de sua vida não tão remoto.
O mundo vem mudando
muito rapidamente. Em nossas terras sentimos dificuldades de compreender essas
mudanças. Assim, a vinda de parentes indígenas às cidades não é só para
passear, para vender artesanato ou para trabalhar, mas também para conhecer e
vivenciar.
O que fizemos neste
prédio magnífico foi retomá-lo de seu abandono. Resgatamos do tempo cruel esse
prédio, Senhor Governador. Nos orgulhamos disso. E os nossos amigos e
visitantes não indígenas sentem o quão importante para a cidade do Rio de
Janeiro e para seus habitantes é este resgate.
Queremos dar vida
cultural a esse prédio. Queremos que nossa cultura, nossas comidas, nosso
artesanato sejam apreciados por todos. Aqui poderemos fazer algo excepcional,
digno desta cidade maravilhosa, que todos amamos.
Venha nos visitar,
Senhor Governador. Venha conhecer esse prédio e ver o que pode ser feito com
ele e por ele. Por nós e por todos que nos ajudarem.
A nossa Copa do
Mundo não vai melhorar se esse prédio for demolido. Ao contrário, vai
empobrecer. O Senhor não acha que os estrangeiros que aqui virão não apreciarão
o fato de ao lado do estádio de futebol mais lindo do mundo haver um Museu vivo
da cultura indígena, a raiz do povo brasileiro? Sabemos que apreciarão, Senhor
Governador. Eles vêm aqui em grande número. Jornalistas, principalmente, para
noticiar em seus países o que estão fazendo sobre esse prédio e conosco, mas
também gente curiosa, ansiosa por conhecer o que é o Brasil. O Brasil somos nós
também, Senhor Governador. Ninguém quererá que eles tenham uma impressão de que
o Brasil é um país que não respeita sua minoria mais enraizada, os brasileiros
natos por excelência. Os estrangeiros, Senhor Governador, querem ver o Museu de
pé, funcionando, e se alegrarão ao ver nossas representações culturais, quando
aqui estiverem.
Por fim, Senhor
Governador, temos a dizer que não sairemos do Museu do Índio. Negociaremos
qualquer coisa, menos isso. Não adianta mandar policia nem tropa de choque. Até
porque já enfrentamos a violência de fazendeiros, bandeirantes, milícias e
forças militares. Perdemos muitas lutas, reconhecemos, mas ganhamos outras, no
sacrifício, na inteligência, na paz. Por isso estamos vivos.
Seu governo se
engrandecerá se nos ajudar a pôr em funcionamento o nosso plano, que também é,
ao que indica sua proposta, seu também. A criação de um Centro Cultural
Indígena, dirigido por nós, autonomamente, com a colaboração valiosa de todos
os brasileiros que têm nos visitado, nos dado sugestões, voluntariamente
convivendo conosco.
Em atenção à sua
carta-proposta, nos despedimos aguardando sua visita e sua mais correta
comunicação.
Atenciosamente,
Comunidade Indígena
Aldeia Maracanã"
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