CONTRATO FIFA: fechamento de ruas, indenizações e desrespeito à legislação brasileira
Durante a Copa do Mundo em 2014, as
cidades-sede irão abdicar de parte de sua autoridade em favor da Fifa. É
o que se pode deduzir a partir do contrato assinado pela Prefeitura de
São Paulo, em setembro de 2011, com a entidade que governa o futebol
mundial. O documento, divulgado no dia 06 de novembro por recomendação
do Ministério Público Federal, garante poderes à Fifa durante o
megaevento esportivo, como a definição de zonas de exclusão e o
fechamento de ruas; o direito da entidade de receber indenizações por
quebras de contrato e o desrespeito à legislação brasileira – caso da
Lei de Licitações e Lei da Cidade Limpa.
O contrato “Host City Agreement” foi
assinado pelo atual prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, em setembro
de 2011 a fim de definir os direitos e obrigações da Prefeitura e do
Comitê Organizador Local (COL) para a realização da Copa. Esse documento
é o mesmo que foi firmado pelas demais cidades-sede, o que significa
que a ingerência da Fifa é nacional. Tal compromisso está no contexto do
pacote de concessões que o governo federal ofereceu para trazer a Copa e
a Olimpíada de 2016 - incluindo visto de entrada no País irrestrito a
clientes da Fifa, fim da obrigatoriedade de mandado judicial para
apreender produtos suspeitos de pirataria e permissão para que o
organizador de grandes competições esportivas privadas conceda
benefícios fiscais, uma atribuição exclusiva da Receita Federal. (ver
Lei Geral da Copa)
Para o professor-convidado da UFF e
pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles, Christopher Gaffney, o
contrato é mais um indício de que a realização de uma Copa do Mundo tem
significado, cada vez mais, a transferência de recursos públicos para a
iniciativa privada. “No documento fica claro que a Fifa não tem que
arcar com nenhum recurso financeiro; a única responsabilidade da
entidade é com a propaganda. Em contrapartida, a cidade-sede deve
reformar ou construir toda a infraestrutura, treinar pessoal, oferecer
segurança, transporte, e custear a gestão de todo esse aparato durante o
megaevento esportivo. Porém, se algo der errado, a Fifa não tem nenhuma
responsabilidade, tem sim direitos. A entidade pode exigir
ressarcimento da cidade-sede por perda ou dano; enquanto a cidade-sede
renuncia do direito de pedir ressarcimento da Fifa. É um contrato que
todo mundo quer fazer”, explica.
O trecho ao qual o professor Christopher
Gaffney se refere é a Cláusula 33 que trata das indenizações entre as
partes – Fifa e cidade-sede. A cláusula 33.6, por exemplo, protege a
Fifa caso alguma cidade seja excluída da Copa. Este cenário pode ocorrer
se a cidade-sede violar algum termo do contrato, se houver um incidente
de força maior ou se o município declarar insolvência. O documento
protege a entidade que rege o futebol de que seja reivindicada qualquer
indenização e, ao mesmo tempo, faz com que a cidade pague ressarcimento à
Fifa e ao COL. Além disso, as cidades-sede poderão ter que ressarcir a
Rede Globo em caso de danos devido a sua condição de emissora principal.
33.18. "A cidade sede pelo
presente renuncia a toda e qualquer reivindicação de responsabilidade
contra o COL, a Fifa e seus dirigentes, diretores, membros, agentes ou
empregados, a respeito de qualquer perda ou dano à cidade, quer ou não
tal perda ou dano tenham sido causados por, ou resultarem de negligência
do COL, da Fifa, de seus dirigentes, diretores, membros, agentes ou
empregados, na medida em que tal perda ou dano estejam incluídos na
classificação de perigos cobertos pelo tipo de seguro de propriedade que
a cidade sede é obrigada a manter segundo este contrato. A cidade sede
ainda indeniza e mantém a Fifa, o COL e as afiliadas comerciais, as
emissoras, a emissora principal, e seus respectivos dirigentes,
diretores, membros, empregados, consultores e agentes externos imunes
contra toda e qualquer obrigação ou responsabilidade, incluindo, sem
limites, toda e qualquer reivindicação, perda, dano, ferimento,
responsabilidade, objeção, demanda, recuperação, deficiência, custo e
despesa que eles possam sofrer ou incorrer como resultado de, ou de
qualquer forma conectados a este contrato, ou qualquer ato ou omissão da
cidade sede sob este documento."
Já a Cláusula 33.8 evidencia o formato
do contrato entre a entidade máxima do futebol e a cidade-sede, isto é, a
“não-existência” de uma relação de parceria em prol dos mesmos
objetivos comuns ou positivos para ambas as partes. “Enquanto a
cidade-sede se alimenta do capital simbólico, do legado que se refere ao
fortalecimento da imagem da cidade para o turismo e os negócios, e para
a ampliação do diálogo com a comunidade nacional; a Fifa defende
interesses financeiros. Vemos que o legado efetivamente público e
coletivo é quase nulo no contexto do megaevento Copa do Mundo. No
Mundial da África do Sul em 2010, a Fifa divulgou um lucro de cerca de
U$ 4 bilhões; já o país sul-africano amargou uma dívida pública com
cifras semelhantes”, argumenta Gaffney.
33.8. Nenhuma Parceria: Nem
este Contrato nem o transcurso dos negócios entre as partes deverão
criar uma relação de consórcio, sociedade, representação ou
relacionamento semelhante entre a Fifa, o COL e a Cidade Sede. A Cidade
Sede não deverá agir ou demonstrar agir com um sócio ou representante da
Fifa ou do Col. Este Contrato não deverá ser considerado como dando à
Cidade Sede autoridade ou poder geral para agir em nome da Fifa ou do
COL, exceto na medida em que expressamente estipulado neste Contrato. As
partes são em todos os aspectos entidades autônomas, e possuem
diferentes interesses financeiros sob este contrato
Zonas de exclusão e outras concessões
A maior parte do documento trata das
questões de marketing, com o argumento de preservar os interesses da
Fifa e de seus parceiros comerciais. Uma das ações que a cidade-sede
deverá realizar trata da criação de um número de telefone para o qual o
público possa denunciar sem cobranças o “uso ilegal das marcas da
competição, incluindo mercadorias falsificadas” (alínea g da cláusula
28.2).
Pensando em fiscalizar o uso comercial
da sua marca e da dos parceiros, Fifa e COL podem reivindicar o
fechamento de ruas de acordo com o que as entidades considerarem
"razoável". "A cidade-sede deverá, sob pedido razoável da Fifa e/ou do
COL, a qualquer momento durante o período da competição, fechar o acesso
público a qualquer via dentro da cidade sede", diz a cláusula 22.2.
Em relação às chamadas “zonas de
exclusão”, a Fifa garante por meio do contrato toda a autoridade dessas
áreas; nelas, só poderão circular seguranças da entidade do futebol e,
no caso de policiamento público, os agentes não poderão portar armas
letais; além disso, só podem ser vendidos nessas zonas produtos dos
parceiros da Fifa. “Em 2010, durante a Copa da África do Sul, a Fifa
fechou uma faixa da Avenida Atlântica, em Copacabana, para o uso vip;
quer dizer, fecharam o espaço que é público para uso privado”, afirma
Chistopher Gaffney e completa:
“Na zona de exclusão a Fifa tem todo o
poder. Por exemplo, a entidade pode pegar um outdoor e cobrir com a
propaganda do Mundial ou de algum parceiro. E se o estádio não tiver
espaço para propaganda, a cidade-sede deve oferecer uma área de
aproximadamente 2500 m² dentro da zona de exclusão – entre outdoor,
placas etc, para a publicidade da Fifa”.
Desrespeito à Legislação Brasileira
Outro questão preocupante do contrato
assinado pela Prefeitura de São Paulo com a Fifa trata do desrespeito à
legislação brasileira. A cláusula 22 prevê, por exemplo, que durante a
competição a Prefeitura deverá, se a Fifa julgar necessário, "fechar o
acesso público a qualquer via dentro da cidade-sede". Ou seja: a
mobilidade urbana, cuja responsabilidade é do poder público e afeta o
cotidiano de toda a metrópole, poderá ser alterada ao bel-prazer de uma
entidade privada - ainda que a Fifa diga que só fará tal pedido quando
considerá-lo "razoável". Outra lei que será transformada em letra morta
durante a Copa será a Cidade Limpa. A cláusula 15 determina que "as
principais localidades por toda a cidade-sede (...) deverão apresentar
decorações que incorporem as marcas da competição". O item manda ainda
que São Paulo torne disponíveis os espaços para essa publicidade,
citando especificamente "postes de luz, faixas, outdoors, fachadas de
edifícios, pontes e meios de transporte público".
O contrato prevê também, na cláusula
30, que São Paulo, em dias de jogos, não poderá receber nenhum outro
evento cultural que atraia "grande número de pessoas", salvo os
patrocinados pela Fifa - o que arbitrariamente limita a vida cultural da
cidade. Além disso, a Fifa exige que a Prefeitura dê permissão para que
bares funcionem "até tarde da noite" em dias de jogos, o que pode
contrariar a Lei 12.879, segundo a qual esses estabelecimentos não podem
ficar abertos após a 1 hora. Há ainda, na cláusula 32, a exigência
absurda de que a Prefeitura não conceda autorização "para nenhum
trabalho de construção privado ou público" no período da Copa, e
"qualquer construção que esteja em progresso no início da competição
deverá ser temporariamente suspensa".
A Fifa pede, na cláusula 18, que a
Prefeitura providencie ao comitê organizador um escritório com todos os
equipamentos e produtos necessários para seu funcionamento - e o poder
público deve "usar de esforços razoáveis" para comprar esse material de
empresas patrocinadoras da Fifa. Ou seja: a Prefeitura deve ignorar a
Lei de Licitações e favorecer determinados fornecedores.
Acesse o documento completo “Host City
Agreement”, versão traduzida para o português e disponível no site da
Prefeitura de São Paulo, aqui.
Por Breno Preto, Comunicação INCT Observatório das Metrópoles
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